04/07/2013

Tahrir bis: revolução ou golpe?


  Vivemos como em 1968 um ano de mobilização planetária. Povo na rua em toda parte. Possivelmente a maior de todas as manifestações  desse ano “quente” foi a do Cairo que precipitou a queda do presidente Mohamed Morsi, da Irmandade Muçulmana.

 Segunda onda revolucionária de “primavera árabe”? Golpe de estado? Democratas pelo mundo afora sentem-se literalmente “embananados” para definir o que acaba de ocorrer. Sua leitura pode ser de um “recall” popular,  prerrogativa que, na ausência de mecanismos institucionais regulares,  foi exercida na rua, aos milhões ou o velho golpe militar igualzinho tantos outros. A resposta final virá com o tempo.
  O governo Morsi era legítimo, eleito por uma maioria clara, ainda que estreita, no segundo turno de uma eleição reconhecidamente limpa. Mas, seguindo a visão sectária e facciosa do seu partido islâmico, anti-laico,  ele entendeu que essa precária maioria o legitimava para governar de maneira hegemonista, sem um mínimo de pactuação com as oposições. Permitiu-se naquela democracia tão recente e precária uma espécie de chavismo islâmico, com a grande diferença que Chavez nunca chegou --salvo em um único referendo-- a perder a maioria enquanto Morsi teria certamente sido derrotado se tivesse convocado eleições antecipadas, como queriam as oposições.
  Raras vezes um governo irritou a tanta gente em tão pouco tempo. Em menos de um ano Morsi isolou-se completamente e gerou uma revolta passional de milhões.
  O Egito estava mergulhado há vários meses numa profunda crise institucional exacerbada por --e exacerbadora de--  uma outra  brutal:  a da econômica à beira do abismo. Fuga de investimentos, colapso do turismo,  queda do padrão de vida com salários corroídos, aumento do desemprego, preços fora de controle, constantes apagões.  Em termos macroeconômicos, o beco sem saída: reservas esgotadas a mercê dos EUA, do Qatar e da Arábia Saudita para poder continuar alimentando o povo que depende de trigo subsidiado. 
Por outro lado o colapso institucional:  o Congresso suspenso por ter sua eleição contestada judicialmente, a Constituição, redigida sem as oposições e referendada por uma estreita maioria relativa, muito pouco expressiva pelo baixo comparecimento. 
 Uma democracia balbuciante, engatinhando, sem uma base política ampla sob uma cultura milenar de autocracia foi sendo comprometida por uma facção sectária, hegemonista cujo objetivo declarado era impor um regime confessional e introduzir pouco a pouco a sharia. Morsi tentou várias vezes assumir poderes ditatoriais tentando açambarcar  o legislativo e o  judiciário.
 A Irmandade,  avessa ao diálogo e certa de estar servindo a Deus,  tentou assumir o controle total das instituições a pretexto de que era preciso expurga-las do pessoal da era do regime de Hosni Mubarak. Mesmo a sua tradição de atuação não-violenta começou a ser posta em dúvida pela organização de grupos de choque que se temia em breve converter-se-iam em milícias islâmicas.
 Morsi multiplicou agravos, gafes e bravatas que terminaram colocando-o num  isolamento total. Uniu contra si os próprio os segmentos sociais nostálgicos da era Mubarak, que representam quase 30% da população, as oposições laicas de esquerda e islâmicas moderadas que representam outros tantos e conseguiu, ao final,  a façanha de colocar contra si até mesmo os salafistas do Al Nur,  partido islâmico ideologicamente ainda mais radical que a própria Irmandade mas que, curiosamente,  preferiu aliar-se à oposição laica e às forças ligadas ao “ancien régime”,  do que ficar com seus irmãos-inimigos.
  Foi afinal um golpe de estado? Formalmente, sim. Um presidente deposto a força apenas concluído o primeiro de seus quatro anos de mandato, numa situação de grande isolamento e impopularidade por uma operação militar. Esta,  no entanto, foi reivindicada por um enorme movimento de massas que levou os militares inicialmente a intimar Morsi à composição e, depois,  a enxota-lo do palácio. Na enorme fragilidade institucional vigente o evento talvez seja mais precisamente caracterizado como uma deposição “à quente”, dentro de uma crise político-institucional aguda. Foi  mais um pronunciamiento, do estamento militar erigido um “poder moderador” e disposto a prevenir uma guerra civil   que um “golpe  militar” clássico.
   Há outros  exemplos históricos de desenlaces militares desse tipo. A queda da IV república francesa, que levou o general Charles de Gaulle a voltar ao poder, em maio de 1958.  E já houve golpes democráticos,  como foi o 25 de abril de 1974, em Portugal, que depois virou a “revolução dos cravos” mas que foi do ponto de vista operacional, um clássico golpe militar só que contra uma ditadura salazarista-colonialista. Podemos listar nessa categoria a deposição de Getúlio Vargas, do Estado Novo, ao fim do Estado Novo, em 1945.
 No entanto, a  preocupante analogia que mais vem à mente é  o golpe preventivo dos generais argelinos contra o FIS(Frente Islâmica da Salvação, na Argélia), de 1991. Também atendendo as súplicas da classe média laica,  apavorada com a perspectiva de uma república islâmica, o golpe produziu uma sangrenta guerra civil.  O  FIS acabara de vencer as eleições e nem chegou a tomar posse. A grande diferença é que na Argélia o golpe fora preventivo. No Egito,  as Forças Armadas deram respaldo e garantiram governabilidade à Irmandade Muçulmana --uma vez garantidos seus próprios privilégios--  até vê-la totalmente desgastada,  isolada numa crise terminal, com mais de 70% dos egípcios contra. Só então agiram.
  Não é possível, neste momento, nem louvar “uma segunda revolução da Praça Tahir”  nem condenar cabalmente “um golpe militar”. É preciso aguardar os desdobramentos. É fundamental ajudar o Egito a sair dessa situação tão difícil e perigosa. Uma suspensão da ajuda econômica norte-americana poderia ser catastrófica. É fundamental é evitar um "cenário argelino"  mantendo um diálogo com a Irmandade e  evitando a repressão brutal. A melhor chance seria a de  recompor as instituições e eleger o mais rápido possível um novo governo e um novo congresso, devidamente legitimados. A mais alta prioridade parece ser a de evitar o desastre econômico iminente, por um lado e a guerra civil, por outro.  É um desafio gigantesco para o Egito com fortes implicações para todo o resto do mundo.
 O drama egípcio é ilustrativo da crise da governabilidade (tanto a democrática quanto a despótica) na era da  crise econômica e climática global. O colapso da agricultura e a crescente falta d’água, por razões climáticas,  são um fator menos reconhecido das rebeliões árabes. Os governos parecem derreter rapidamente, mesmo quando  logram certos  sucessos, como Morsi,  no início. Parece haver uma tendência à entropia e à pulverização. O poder de estado, de todo tipo, parece diminuído frente a forças centrífugas. Para alguns vivemos na iminência de uma era dos estados falidos. A Somália e a Síria seriam experiências percussoras. O pior, no entanto, não é certo. De qualquer maneira é patente que “tudo que é sólido, desmancha no ar”. 
E  não apenas no Egito...

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